Depois dos quatro cardeais, falam seis leigos. Talvez ao menos o Papa Francisco os escute
A primeira vítima desta deformação doutrinal é precisamente o Papa, que me atrevo a hipotetizar que é muito pouco consciente dela, vítima de uma alienação generalizada e histórica da Tradição, em amplos estratos do ensinamento teológico.
Settimo Cielo di Sandro Magister | Tradução: Airton Vieira — 22/04/2017
Os quatro cardeais jamais estiveram sós com suas “dubia“. A prova disto é o que sucedeu em Roma no sábado 22 de abril em uma sala do Hotel Columbus, a poucos metros da praça São Pedro, onde se reuniram seis renomados eruditos leigos de outros tantos países do mundo para dar voz ao chamado que se eleva de grande parte do “povo de Deus”, para que seja lançada luz sobre a confusão suscitada por “Amoris laetitia”.
Anna M. Silvas chegou da Austrália, Claudio Pierantoni do Chile, Jürgen Liminski da Alemanha, Douglas Farrow do Canadá, Jean Paul Messina de Camarões e Thibaud Collin da França. Um após o outro no lapso de um dia, fizeram um balanço da crise que produziu na Igreja o documento do papa Francisco, a um ano de sua publicação.
Settimo Cielo oferece a seus leitores os textos íntegros das seis intervenções, nos idiomas em que foram pronunciados. Mas requer uma atenção especial o de Claudio Pierantoni, estudioso de patrologia e docente de filosofia medieval na Universidade do Chile, em Santiago, do qual mais abaixo se oferece uma síntese.
Pierantoni retoma os casos de dois Papas caídos no erro nos primeiros séculos cristãos, no plano das controvérsias trinitárias e cristológicas, um condenado “post mortem” por um concílio ecumênico e o outro induzido a corrigir-se em vida.
Mas também hoje – argumenta – há um Papa que é “vítima”, ainda que “pouco consciente”, de uma tendência herética que socava os fundamentos da fé da Igreja. E também ele está necessitado de uma correção caritativa que o reconduza ao caminho da verdade.
Pierantoni não é o único, dos seis, que tem lembrado as lições do passado, antigo e recente.
Thibaud Collin, docente de filosofia moral e política no Colégio Stanislas, de Paris, recordou como exemplo a oposição de numerosos teólogos e episcopados inteiros à encíclica “Humanae vitae”, de Paulo VI, rebaixada a puro “ideal” e com isso convertida em inoperante. E mostrou como esta deletéria “lógica” pastoral se pôs de novo no auge com “Amoris laetitia”, no que se refere ao matrimônio indissolúvel e imediatamente também a respeito das relações homossexuais.
Anna M. Silvas, australiana de rito oriental, estudiosa dos Padres da Igreja e docente na Universidade de Nova Inglaterra, sublinhou por sua parte o perigo que a Igreja Católica avance também ela pelo caminho já recorrido séculos atrás pelos protestantes e pelos ortodoxos rumo ao divórcio e as segundas núpcias: justamente agora – agregou surpreendentemente – que a Igreja copta está se orientando rumo a indissolubilidade sem exceções do matrimônio cristão.
Sobre uma resposta do papa Francisco às “dubia”, assim como também a uma eventual “correção” sua, Anna M. Silvas se mostrou cética. Propõe melhor uma “opção Bento” para a atual era pós-cristã, inspirada no monarquismo nos tempos do colapso da idade antiga, um humilde e comunitário “habitar” em Jesus e o Pai (Jo 14, 23) em confiada espera, feita de oração e trabalho, até que cesse a tempestade que hoje transtorna o mundo e a Igreja.
Seis vozes, seis leituras diferentes. Todas profundas e nutridas de “caritas in veritate”. Quem sabe se o Papa, ao menos, os escutará.
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A NECESSÁRIA COERÊNCIA DO MAGISTÉRIO COM A TRADIÇÃO. OS EXEMPLOS DA HISTÓRIA
por Claudio Pierantoni
Nesta intervenção examinaremos primeiro e em forma breve a história de dois Papas da antiguidade, Libério e Honório, quem por diferentes motivos foram acusados de desviar-se da Tradição da Igreja, durante a longa controvérsia trinitária e cristológica que comprometeu a Igreja do século IV ao século VII.
À luz das reações do corpo eclesial frente a estes desvios doutrinais, examinaremos em seguida o debate atual que tem se desenvolvido em torno das propostas do papa Francisco na exortação apostólica “Amoris laetitia” e das cinco “dubia” propostas pelos quatro cardeais.
1. O caso de Honório
Honório I foi o único Papa formalmente condenado por heresia. Estamos nas primeiras décadas do século VII, no contexto da controvérsia sobre as duas vontades de Cristo. Honório sustentava a doutrina da única vontade de Cristo, o “monotelismo”, a qual foi declarada posteriormente em contradição com o dogma das duas naturezas, a divina e a humana, doutrina solidamente fundamentada sobre a base da revelação bíblica e solenemente sancionada no ano 451 pelo Concílio de Calcedônia.
Aqui apresentamos o texto com o qual, em 681, logo após sua morte, o sexto concílio ecumênico, o Terceiro Concílio de Constantinopla, o condenou junto com o patriarca Sérgio:
“Examinadas as cartas dogmáticas escritas por Sérgio, em seu momento patriarca desta cidade imperial,… e a carta com a que Honório respondeu a Sérgio, e constatado que não são conformes os ensinamentos apostólicos e as definições dos santos Concílios e de todos os ilustres santos Padres, que pelo contrário seguem as falsas doutrinas dos hereges, as rejeitamos e as condenamos como corruptas”.
2. O caso de Libério
Libério, pelo contrário, foi Papa em um dos momentos mais delicados da controvérsia ariana, a metade do século IV. Seu predecessor, Júlio I, havia defendido tenazmente a fé estabelecida pelo Concílio de Niceia, do ano 325, que declarou o Filho consubstancial ao Pai. Mas Constâncio, imperador do Oriente, apoiou a posição majoritária dos bispos orientais, contrários a Niceia, que segundo eles não deixava espaço para a diferença pessoal entre o Pai e o Filho. Fez raptar, depor e enviar ao exílio, na Tracia, o Papa, quem depois de quase um ano terminou por ceder.
Deste modo Libério renegou a fé de Niceia e chegou a excomungar a Atanásio, seu mais significativo defensor. Agora dócil ao imperador, Libério obteve a permissão de voltar a Roma, onde foi restabelecido como bispo. Nos meses que seguiram, todos os prelados filo-arianos que haviam feito carreira graças ao favor de Constâncio consolidaram seu poder nas principais sedes episcopais. Este é o momento no que, segundo a famosa frase de são Jerônimo, “o mundo se lamentou de ter-se convertido em ariano”. Dos mais de mil bispos que contava o cristianismo, somente três se mantiveram irredutíveis no exílio: Atanásio, de Alexandria; Hilário, de Poitiers, e Lúcifer, de Cagliari.
Mas Constâncio morreu imprevistamente, no ano 361, e subiu ao trono imperial Juliano, logo chamado o Apóstata, quem impôs o retorno do Estado romano ao paganismo, cancelou de um golpe toda a política eclesiástica de Constâncio e permitiu aos bispos exilados retornar à pátria. Livre de ameaças, o papa Libério enviou uma encíclica que declarava inválida a fórmula aprovada por ele anteriormente e exigia dos bispos da Itália a aceitação do Credo de Niceia. No ano 366, em um sínodo celebrado em Roma pouco antes de morrer, teve inclusive a alegria de obter a adesão do Credo de Niceia por parte de uma delegação de bispos orientais. Apenas morreu foi venerado como confessor da fé, mas rapidamente se interrompeu seu culto, por causa da lembrança de sua defecção.
Apesar de suas diferenças, os dois casos de Libério e de Honório têm em comum um atenuante: é o fato que os respectivos desvios doutrinais tiveram lugar quando ainda estava em curso o processo de fixação dos respectivos dogmas, o trinitário no caso de Libério e o cristólogico no caso de Honório.
3. O caso de Francisco
Pelo contrário, o desvio doutrinal que tem se verificado durante o pontificado atual tem um agravante, porque não se contrapõe a doutrinas pouco claras ou em vias de fixação, mas a doutrinas que, além de estar solidamente ancoradas na Tradição, também já foram exaustivamente debatidas nas décadas passadas e esclarecidas detalhadamente pelo magistério recente.
Com certeza, o desvio doutrinal em questão já estava presente nas décadas passadas e com ela, então, também o cisma subterrâneo que aquela significava. Mas quando se passa de um abuso a nível prático a sua justificação a nível doutrinal através de um texto do magistério pontifício como “Amoris laetitia” e através de declarações e ações positivas do mesmo pontífice, a situação muda radicalmente.
Vejamos, em quatro pontos, o progresso desta destruição do depósito da fé.
Primeiro
Se o matrimônio é indissolúvel, mas também em alguns casos se pode dar a comunhão aos divorciados “recasados”, parece evidente que esta indissolubilidade já não é considerada absoluta, mas somente uma regra geral que pode sofrer exceções.
Agora bem, isto, como explicou o cardeal Carlo Caffarra, contradiz a natureza do sacramento do matrimônio, que não é uma simples promessa, ainda que solene, feita diante de Deus, mas uma ação da graça que atua ao nível propriamente ontológico. Em consequência, quando se diz que o matrimônio é indissolúvel, não se enuncia simplesmente uma regra geral, como que se diz que o matrimônio não pode dissolver-se ontologicamente, porque nele está contido o signo e a realidade do matrimônio indissolúvel entre Deus e seu Povo, entre Cristo e sua Igreja. Este matrimônio místico é justamente a finalidade de todo o plano divino da criação e da redenção.
Segundo
O autor de “Amoris laetitia” escolheu insistir, em sua argumentação, mais sobre o lado subjetivo da ação moral. O sujeito, diz, poderia não estar em pecado mortal porque, por distintos fatores, não é consciente que sua situação é um adultério.
Mas o que em linhas gerais pode suceder sem mais, na utilização que faz disso “Amoris laetitia” conduz, ao contrário, a uma contradição evidente. Em efeito, é claro que os tão recomendados discernimento e acompanhamento das situações particulares contrastam diretamente com o suposto que o sujeito permanece, indefinidamente, inconsciente de sua situação.
Mas o autor de “Amoris laetitia”, longe de perceber tal contradição, a impulsiona até o ulterior absurdo de afirmar que um discernimento profundo pode levar o sujeito a ter a segurança que sua situação, objetivamente contraria à lei divina, é precisamente o que Deus quer dele.
Terceiro
Recorrer ao anterior argumento, por sua vez, revela uma perigosa confusão que, além da doutrina dos sacramentos, chega a menoscabar a noção mesma da lei divina, entendida como fonte da lei natural e refletida nos Dez Mandamentos: lei dada ao homem e como tal apta para regular seus comportamentos fundamentais, não limitados a circunstâncias históricas particulares, mas fundamentados em sua mesma natureza, cujo autor é precisamente Deus.
Em consequência, supor que a lei natural pode suportar exceções é uma verdadeira e autêntica contradição, é uma suposição que não compreende sua verdadeira essência e por isso a confunde com a lei positiva. A presença desta grave confusão está confirmada pelo ataque reiterado, presente em “Amoris laetitia”, contra os leguleios, os presuntos “fariseus” hipócritas e duros de coração. Em efeito, este ataque revela um mal-entendido completo da posição de Jesus a respeito da lei divina, porque sua crítica ao comportamento farisaico se funda justamente sobre uma clara distinção entre a lei positiva – os “preceitos dos homens” – aos que são tão apegados os fariseus, e os Mandamentos fundamentais, que pelo contrário são o primeiro requisito, irrenunciável, que Ele mesmo pede ao que aspira a ser seu discípulo. Sobre a base deste equívoco se compreende o verdadeiro motivo pelo qual, logo após haver insultado os fariseus, o Papa termina por alinhar-se de fato com sua mesma posição a favor do divórcio, contra a posição de Jesus.
Mas indo ainda mais a fundo, é importante observar que esta confusão desnaturaliza profundamente a essência mesma do Evangelho e seu necessário arraigo na pessoa de Cristo.
Quarto
Em efeito, segundo o Evangelho, Cristo não é simplesmente um homem bom que veio ao mundo para pregar uma mensagem de paz e justiça. Ele é antes que nada o Logos, o Verbo que existia no princípio e que se encarna na plenitude dos tempos. É significativo que Bento XVI, desde seu discurso “Pro eligendo romano pontifice”, tenha feito justamente do Logos a pedra angular de seu ensinamento, não por casualidade combatida à morte pelo subjetivismo das teorias modernas.
Outrossim, no âmbito desta filosofia subjetivista se justifica um dos postulados mais apreciados pelo papa Francisco, segundo o qual “a realidade é superior à ideia”. De fato, uma máxima como esta tem sentido somente em uma visão na qual não podem existir ideias verdadeiras, que não só reflitam fielmente a realidade, senão que possam também julgá-la e dirigi-la. Tomado em sua totalidade, o Evangelho supõe esta estrutura metafísica e gnoseológica, na que a verdade é em primeiro lugar adequação das coisas ao intelecto, e o intelecto é em primeiro lugar o divino, justamente o Verbo divino.
Nesta atmosfera se compreende como é possível que o diretor de “La Civiltà Cattolica” afirme que é a pastoral, a praxe, a que deve guiar a doutrina e não ao contrário, e que em teologia “dois mais dois podem ser cinco”. Se explica por que uma senhora luterana pode receber a comunhão junto ao esposo católico: de fato, a praxe, a ação, é a da Ceia do Senhor que eles têm em comum, enquanto que aquilo no que diferem são somente “as interpretações, as explicações”, em síntese, simples conceitos. Mas se explica também como, segundo o superior geral da Companhia de Jesus, o Verbo encarnado não estaria em condições de pôr-se em contato com suas criaturas através do meio elegido por ele mesmo, a Tradição apostólica: em efeito, seria necessário saber que é o que tem dito verdadeiramente Jesus, mas não podemos, diz, “desde o momento que não houve um gravador”.
Indo ainda mais a fundo, nesta atmosfera, se explica em última instância como o Papa não pode responder “sim” ou “não” às “dubia”. Se em efeito “a realidade é superior à ideia”, então o homem não tem nem sequer necessidade de pensar com o princípio de não-contradição, não tem necessidade de princípios que digam “isto sim e isto não” e nem sequer deve obedecer a uma lei natural transcendente que não se identifica com a realidade mesma. Em síntese, o homem não tem necessidade de uma doutrina, porque a realidade histórica se basta a si mesma. É o “Weltgeist”, o Espírito do Mundo.
4. Conclusão
O que salta à vista na situação atual é justamente a deformação doutrinal de fundo que, apesar de ser hábil para esquivar formulações diretamente heterodoxas, manobra contudo em forma coerente para levar adiante um ataque não só contra os dogmas particulares como a indissolubilidade do matrimônio e a objetividade da lei moral, como diretamente contra o conceito mesmo da reta doutrina e, com isso, da pessoa mesma de Cristo como Logos. A primeira vítima desta deformação doutrinal é precisamente o Papa, que me atrevo a hipotetizar que é muito pouco consciente dela, vítima de uma alienação generalizada e histórica da Tradição, em amplos estratos do ensinamento teológico.
Nesta situação, as “dubia”, estas cinco perguntas apresentadas pelos quatro cardeais, puseram o Papa em um beco sem saída. Se respondesse negando a Tradição e o magistério de seus antecessores, passaria a estar também formalmente herege, então não pode fazê-lo. Se, do contrário, respondesse em harmonia com o magistério anterior, entraria em contradição com grande parte das ações doutrinalmente relevantes levadas a cabo durante seu pontificado, por isso seria uma decisão deveras difícil. Elegeu então o silêncio, porque humanamente a situação pode parecer sem saída. Mas não obstante se estendem na Igreja a confusão e o cisma “de fato”.
À luz de tudo isto, se torna então mais que nunca necessário um ulterior ato de valentia, de verdade e de caridade, por parte dos cardeais, mas também dos bispos e ato contínuo de todos os leigos qualificados que queiram aderir. Em uma situação tão grave de perigo para a fé e de escândalo generalizado, não só é lícita como diretamente obrigatória uma correção fraterna francamente dirigida a Pedro, por seu bem e pelo de toda a Igreja.
Uma correção fraterna não é nem um ato de hostilidade, nem uma falta de respeito, nem uma desobediência. Não é outra coisa que uma declaração da verdade: “caritas in veritate”. Antes de ser Papa, o Papa é nosso irmão.
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O texto íntegro da intervenção de Claudio Pierantoni:
> La necessaria coerenza del magistero con la Tradizione. Gli esempi della storia
E o de Anna M. Silvas:
> A Year After “Amoris Laetitia”. A Timely Word
De Douglas Farrow:
> The Roots of the Present Crise
De Thibaud Collin:
> Discerner en conscience?
De Jürgen Liminski:
> “Co-créé avec l’Homme”. Pourquoi l’indissolubilité du mariage est une bonne chose pour la société
De Jean Paul Messina:
> Lecture d’”Amoris Laetitia” pour l’Afrique et les Églises d’Afrique
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Fonte: http://magister.blogautore.espresso.repubblica.it/2017/04/22/despues-de-los-quatro-cardeais-falan-seis-leigos-quizas-al-menos-el-papa-los-escute/
Via:http://www.sensusfidei.com.br/2017/04/24/depois-dos-quatro-cardeais-falam-seis-leigos-talvez-ao-menos-o-papa-os-escute/#.WP6IDdy1vDd
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