O último texto promulgado pelo papa argentino, hoje com 78 anos, colocou lenha na fogueira do que se pode seguramente definir como o princípio de uma resistência organizada contra Francisco. Publicando na terça-feira passada um documento que permite, de modo mais fácil e mais rápido, uma anulação do matrimônio religioso, o papa colocou a Igreja diante um fato consumado. Mitis Iudex Dominus, assim se intitula este edito, ou seja, o “Senhor, juiz clemente”. Todavia, desta clemência, que Francisco quer oferecer aos crentes em conflito com as regras da Igreja, a Cúria não quer ouvir falar. Muitos dos Monsenhores, que estão nominalmente nos comandos da Igreja universal, estão fora de si.
Vê-se isto em um dossiê de linguagem mordaz que circula nestes dias nos mais importantes escritórios do Vaticano, entre os quais é preciso contar também a Congregação para a Doutrina da Fé e a Secretaria de Estado. Nele, o motu próprio sobre a atenuação da declaração de nulidade matrimonial é examinado juridicamente, em seus pormenores.
Recrimina-se o papa principalmente por ter contornado as congregações competentes em uma matéria tão essencial para a Igreja, e por ter, de fato, introduzido o “divórcio católico“. O documento, que conta com várias páginas, fala de uma “evolução preocupante“, onde o processo legislativo regular na Igreja universal é reduzido a nada. A maioria dos fusíveis no processo de anulação matrimonial se encontram deliberadamente em “curto-circuito“.
“Nenhuma das etapas previstas no processo legislativo foi mantida“, lê-se nesse texto. Nem as conferências episcopais, nem as congregações e conselhos competentes, nem a Assinatura apostólica foram envolvidos. “Do simples ponto de vista formal já há graves lacunas“. É sublinhado também que, durante o último sínodo dos bispos, não houve “nenhum acordo unânime” sobre o modo de agir decidido hoje pelo papa em relação à anulação matrimonial. “O processo escolhido é o oposto da sinodalidade tão invocada e da discussão franca e aberta“.
O significado do matrimônio, em particular o tratamento reservado aos cônjuges, divorciados e comprometidos num novo casamento civil, é o epicentro dos debates sobre as orientações futuras da Igreja. A indissolubilidade do matrimônio é o dogma ao qual se agarram os eclesiásticos conservadores. O “divórcio ao modo católico“, tornado possível pelo papa, representa a principal catástrofe para os guardiões da doutrina, como o prefeito alemão da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Gerhard Ludwig Müller. O ato informal de acusação contra Francisco também se encontra sobre sua mesa. Müller e seus muitos aliados na cúria temem que todo o edifício desmorone a partir do momento em que seja eliminado um de seus fundamentos. Aos olhos deles, o que está em jogo nada mais é que a sobrevivência da verdadeira Igreja católica.
Enquanto as disposições que eram utilizadas até aqui privilegiavam a preocupação de manter o matrimônio católico, os diferentes mecanismos jurídicos que buscavam este fim foram – é a convicção dos críticos do papa – intencionalmente eliminados. “O novo texto não diz nada sobre os meios pastorais ou jurídicos para salvar ou tornar válido o matrimônio. Esta ausência dá o que pensar“, pode-se ler no documento. Em suma, a evolução seria “perigosa“.
E os autores prosseguem: “Não se pode se desfazer da impressão de que não se trata mais aqui de constatar a verdade em relação a um vínculo matrimonial concreto, mas declarar nulos o maior número possível de casamentos“. Isto quer dizer concretamente: o dogma da indissolubilidade, que Francisco cita expressamente, em dois momentos, na introdução do motu próprio, é, na realidade, de acordo com o redator do documento, esvaziado de seu sentido. “Está na hora de abrirmos a boca“, reclama num tom rebelde um alto prelado da cúria.
Em particular, a introdução de um processo sumário, de uma duração de apenas 30 dias, sob a autoridade do bispo, para a declaração de nulidade do matrimônio indispõe muito os críticos do papa. No dossiê, pode-se ler que este processo “representa o perigo de abrir o caminho ao divórcio católico“. Muitos entre os 3600 bispos diocesanos divididos pelo globo ficariam completamente sobrecarregados com esta nova tarefa. “Além disso, a questão que se coloca é saber quantos bispos no mundo serão capazes de fazer uma avaliação que lhes permita chegar à certeza moral requerida“.
Segundo os críticos de Francisco, muitos problemas teológicos polêmicos foram ignorados. Assim, encontram-se no documento pontifical várias razões extremamente confusas que podem justificar o recurso a um processo sumário, como “a falta de fé“, ou ainda outros motivos que permanecem indeterminados. Seria “muito preocupante” que o consentimento do casal fosse suficiente para introduzir um processo sumário. De acordo com as novas normas, este processo é até previsto quando um dos parceiros não reage à segunda interpelação. “Que um texto jurídico deixe aberto, por um “etc.” colocado no fim de frase, um amplo leque de possibilidades, é provavelmente inédito na legislação“, faz observar, não sem ironia, o dossiê.
Se se deveria chegar com isso, como temem os adversários do papa, a uma onda de declarações de nulidade, o problema do acesso aos sacramentos dos divorciados recasados, que agita a Igreja já faz muito tempo, seria praticamente eliminado. Eles agora podem abandonar sem problema algum seu casamento católico, contraído, de fato, para sempre. Por decreto pontifício.
O sínodo, que começa neste dia 4 de outubro, corre o risco agora de ser reduzido a um clube de debatedores fechados em si mesmos. O papa, supostamente, decide, de todo modo, segundo seu bel prazer. Ele não se limita ao modo regular de legislar, lê-se ainda nas sete páginas do documento. As conferências episcopais, assim como todas as administrações curiais, e até os serviços jurídicos do Vaticano, foram contornados.
Uma comissão constituída pelo papa, constrangida ao silêncio, redigiu um projeto de lei no mais completo segredo. Sem isto, ela teria, sem dúvida, sido interrompida e contrariada pelo aparato da cúria. Ainda que, durante o sínodo do outono passado, vivos protestos tenham se levantado contra a ideia de introduzir um processo rápido de contestação de nulidade de um matrimônio sob a autoridade do bispo, agora isto já é uma lei da Igreja – antes mesmo que o sínodo tenha podido retomar o exame deste assunto.
O papa quer impor forçosamente o caminho que ele traçou há muito tempo? Nos cenáculos mais importantes da cúria, as dúvidas se tornaram há muito tempo uma certeza. Mas muitos crentes se rejubilarão.
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